Foto: Ricardo Stuckert
A possível indicação de Cristiano Zanin, advogado e amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), para o STF (Supremo Tribunal Federal) pode violar o princípio da impessoalidade e comprometer a legitimidade do tribunal perante a sociedade, avaliam representantes do mundo jurídico ouvidos pela Folha.
Zanin atuou nos processos em que Lula foi réu no contexto da Operação Lava Jato, inclusive no que resultou na prisão do petista por 580 dias em Curitiba. As ações foram posteriormente anuladas pelo STF.
Recentemente, Lula se referiu ao advogado como seu amigo e afirmou que ninguém estranharia se ele o indicasse à corte.
“Hoje, se eu indicasse o Zanin, todo mundo compreenderia que ele merecia ser indicado. Tecnicamente cresceu de forma extraordinária, é meu amigo, é meu companheiro, como outros são meus companheiros, mas nunca indiquei por conta disso”, afirmou em entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo na BandNews.
A declaração contrariou falas do próprio petista ao longo da campanha eleitoral de 2022. Em entrevista à bancada do Jornal Nacional, no primeiro turno, Lula afirmou: “Eu não quero amigo em nenhuma instituição”.
Declaração semelhante foi feita no debate Folha/UOL/Band/TV Cultura, no segundo turno.
“Não é prudente, não é democrático um presidente da República querer ter os ministros da Suprema Corte como amigos. Eu acho que a Suprema Corte tem que ser escolhida por competência, por currículo, e não por amizade”, disse.
A próxima vaga no STF será aberta com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, que completará 75 anos em maio deste ano.
A proximidade de Zanin com o presidente é citada como preocupação entre especialistas ouvidos pela Folha.
“Acredito que não é impossível existir isenção quando nós temos ideologia e uma tendência de alinhamento pessoal muito grande envolvidas. Desvirtua o preceito da magistratura de impessoalidade, que é um princípio constitucional”, afirma Luciana Berardi, integrante da comissão de direito constitucional da OAB-SP e professora da Escola Paulista de Direito.
Rubens Glezer, professor da FGV Direito São Paulo e coordenador do grupo de pesquisa Supremo em Pauta, diz que a fala de Lula sobre Zanin é problemática e ambígua.
“O presidente trata uma instituição pública como um presente. Outra interpretação é: ‘vou colocar ali porque é alguém com quem estou absolutamente alinhado e é isso que o faz merecedor do cargo’. Isso é muito parecido com o Bolsonaro, que queria alguém terrivelmente evangélico, que pensasse como ele.”
Outra preocupação manifestada pelos professores é em relação à imagem do tribunal, no momento em que o Judiciário é alvo de desconfiança e após ataques da direita bolsonarista.
“A corte é extremamente relevante e tem que passar a imagem de que é a garantidora da Constituição, não importa quem nomeou e por onde vão as decisões”, diz a cientista política Maria Tereza Sadek, professora sênior da USP. “O regime democrático presidencialista envolve a ideia de um Judiciário independente e que atua de acordo com a lei.”
Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco, Flávia Santiago Lima diz que o poder do Supremo de derrubar leis aprovadas pelo Congresso torna a questão ainda mais delicada.
“O tribunal precisa se mostrar impessoal e neutro, porque é isso que o legitima a eventualmente até invalidar a vontade popular.”
Oscar Vilhena, professor da FGV Direito SP e colunista da Folha, reforça que o Supremo tem uma atuação crucial para a defesa da democracia, mas traz a questão da diversidade.
“Seria fundamental a ampliação do número de mulheres e de pessoas negras na corte. Lula deveria usar a sua prerrogativa para ampliar a representatividade da sociedade brasileira no tribunal”, afirma.
Nos últimos dias, entidades jurídicas, ministros do governo Lula e o ministro do STF Edson Fachin se manifestaram publicamente a favor da indicação de uma magistrada negra à corte.
A indicação de um ministro com ligações próximas ao presidente da República não é novidade, mas, se confirmada, a de Zanin seria o único caso na atual composição em que esse elo é estritamente pessoal.
Os demais casos são os de André Mendonça, ex-advogado-geral da União na gestão Jair Bolsonaro (PL); Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça de Michel Temer (MDB); Dias Toffoli, também ex-AGU de Lula; e Gilmar Mendes, que ocupou o mesmo posto no governo FHC.
Presidente da AMB (Associação dos Magistrados do Brasil) na época da indicação de Gilmar Mendes, Cláudio Baldino Maciel avalia que a situação atual tem diferenças em relação à do indicado por FHC.
Ele lembra que o maior incômodo da classe com Gilmar era o uso de expressões de confronto, como “manicômio judiciário”.
Já em relação a Zanin, também em sua visão pesa a questão da impessoalidade.
“Ele foi advogado do presidente Lula em um momento muito dramático, é de se perguntar se não há uma relação de pessoalidade muito próxima”, diz ele, acrescentando que o Senado deveria ser mais rigoroso na análise dos indicados.
A Constituição estabelece poucos critérios para alguém ocupar a corte: ter mais de 35 anos, reputação ilibada e notório saber jurídico. Não há definição legal de quais quesitos devem ser considerados para saber se tais requisitos foram preenchidos.
Para cumprir o rito, a indicação precisa então passar pelo crivo do Senado, com sabatinas e votações na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e plenário, onde a aprovação ocorre por maioria absoluta, ao menos 41 votos dos 81 senadores, o que tem acontecido sempre.
Não há certeza sobre qual seria a atuação de Zanin nos processos em que Lula ou o governo são parte.
Os códigos de Processo Civil e Processo Penal estabelecem que há suspeição do juiz (ou seja, ele não deve participar do julgamento) quando ele for “amigo íntimo” ou inimigo de alguma das partes. Outros critérios são ter recebido presentes ou ter aconselhado alguma das partes.
Para Berardi, haveria um conflito ético na indicação de Zanin, a exemplo do que aconteceu com a indicação de Toffoli e Mendonça.
“Cada vez mais os requisitos constitucionais estão sendo deixados de lado e as indicações estão se pautando essencialmente em termos políticos, como um afago. Isso podemos ver também nas indicações de 12 esposas para os TCUs (Tribunais de Contas da União) dos estados.”
Para Glezer (FGV), as regras constitucionais são minimalistas.
“O que mais impressiona é que a cada indicação não se faz um debate imprescindível: quais são as qualidades que queremos dos candidatos e candidatas? Eles precisam ter que tipo de carreira, que tipo de perfil e trajetória?”, diz.
Sadek (USP) afirma que, entre os aspectos que precisam ser melhor debatidos, está o tempo de permanência na corte, uma vez que há ministros indicados ainda jovens para o cargo e que podem permanecer por décadas no Supremo.
Procurado pela reportagem, Zanin não quis se manifestar. Em conversas reservadas, o advogado tem dito que não frequenta a casa de Lula nem o petista a sua, que é um defensor do sistema de Justiça e que quem criou a desconfiança em relação ao Judiciário foi a Lava Jato.
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Folhapress